sexta-feira, 13 de julho de 2012

Inversão

Os sinais e rugas mapeados pelas mãos engelhadas e amarelas abrem o mundo pela janela. Há muito que este momento está pensado e arquitectado, há muito que tem de novo os seus sete anos deixando para trás a carcaça velha cheia de ossos gastos numa outra dimensão. Vive no sonho e o sonho vivia intensa e infinitamente. Nunca realmente adormeceu e nunca realmente acordará, apenas vive sonhando acordada e procura o que nunca foi capaz de encontrar. Está agora empoleirada no parapeito, pronta para voar. As pernas pressionam o chão, o ar agarra as suas mãos e está pronta para voar. O mundo espalha-se pelo seu corpo enquanto o sonho lhe permite abrir asas e planar. Pertence agora ao mundo do seu mundo, é espírito no seu interior, é vida que lhe escorre pelo sangue, são lágrimas insaciáveis que curam as suas veias. Quando finalmente todo o corpo se desperta, os seus olhos não abrem realmente, as suas mãos não foram permitidas entre os céus, mas continua voando num sonho de brincadeira que se dilui por todo a realidade deixando-a eternamente a planar.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Exercício de Escrita Criativa de metaforizações: "Prisão"


Prisão

Enquanto olha o céu tudo se torna alheio, o seu redor dissipa-se e é transportado para outra dimensão. Os seus olhos prendem-se a nada mais senão à imensidão do Universo. A pequenez do seu corpo, da sua matéria física, envolve-se com aquilo que apenas alcança com o olhar. E esse mesmo olhar enche-se com o vazio daquilo que apenas poderá imaginar que está presente, que realmente existe, a figura, a entidade que deu origem a todas as coisas. Não seria de esperar que algo ou alguém teve a primeira ideia de pintar a tela que um dia esteve em branco para dar origem a um mundo repleto de vidas alheias a toda a envolvência da imensidão do Universo?
E por muito mais tempo que possa aguentar olhando o céu, é inevitável o pensamento e a negação de que poderá estar sozinho, de que a solidão na contemplação de algo imenso e indistinto poderá ser apenas partilhada pelo seu pensamento. Mas quando as certezas nascem no interior do nosso íntimo consciente o período de segurança é efémero, todas as bases em que se sustenta para justificar a sua existência falecem e rompem-se com a indefinição do conhecimento que sabe que não pode alcançar - pois sempre que tomar por garantido o pensamento e a certeza da razão para a sua existência existirá sempre uma tela por pintar.




2. Listar - exercício 1: "Uma parede branca"

Palavras e expressões escolhidas:
- indefinição
- vazio
- tela
- solidão
- imensidão - antónimo: prisão


segunda-feira, 2 de julho de 2012

Geração esquecida à janela


As mãos engelhadas e amarelas, mapeadas por sinais e rugas, abrem a janela para a rua. Os seus olhos apagados e quase transparentes enchem-se com as luzes dos carros e das lojas, e os seus ouvidos com o ruído da vida que corre lá fora. Dentro daquele quarto os dias não têm a mesma pressa e tornam-se pesados enquanto espera pelo momento que sabe que virá.
No décimo andar, entre um labirinto de janelas, ninguém dá por ela. As pessoas traçam a sua própria passagem, olhando em frente e seguindo rigorosamente os caminhos-de-ferro do dia-a-dia. Entre uma geração individualmente realizada, os mais velhos, experientes e sábios, já não têm o mesmo valor.
O ar que deixou de circular pela sua casa encheu cada espaço com o cheiro a “guardado” e a mofo. Sozinha não é capaz de percorrer os milhares de quilómetros que parecem ter os seus corredores. A porta da sua casa não recebe mais visitas e a campainha não é usada há longos dias, meses, talvez anos – sabe-se lá. Os sofás não relembram momentos em família porque os seus filhos e netos não passam por eles. As molduras revivem momentos que já lá vão e não voltam.
Há muito que o telefone não toca e que a voz do seu pensamento é a única que enche o seu próprio quarto. Por quanto tempo mais? Não se sabe. Ninguém realmente sabe ou quer saber porque já há muito que a esqueceram.
Os mapas desenhados no seu rosto contam histórias de uma vida de trabalho e de experiência – ela é um tesouro, mas ninguém o descobre. Tem tanto para dar, tanto para ensinar, mas é mais um livro fechado e arrumado numa estante alta que ganha pó todos os dias.
O que mais espera este ser precioso? O que mais pode esperar? Entre as famílias de hoje não há espaço para a geração mais antiga e antiquada e os velhos são apenas trapos que teimam em ocupar espaço e tempo – ela sabe e sente-o todos os dias.
As suas mãos marcadas pelo trabalho duro de uma vida e pelos filhos que carregou e guiou são hoje apenas mãos esquecidas e sozinhas que esperam uma outra para agarrar.
E quando olha por aquela janela, os seus olhos reflectem muito mais do que a luz dos carros e das lojas, ou o rasto das pessoas. São espelhos baços da solidão em que vive, da tristeza do seu esquecimento e do aperto no coração que pouco mais aguenta dentro do seu mundo tão pequeno, entre as paredes de uma casa que tem tanto mais para contar.